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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #22

(Princípio da publicidade -Sexta parte)

164. Três das acepções analógicas da “publicidade registral −a saber, a expressividade, a cognoscibilidade e a significância− são tão implicadas entre si que pouco menos ensejam do que distinguir-se.

Ora, o registro deve expressar-se de modo que possa conhecer-se compreensivamente. De não ser assim, não cumpriria sua finalidade assecuratória (ou seja, tem-se de saber, clara e precisamente, o que efetivamente se assegura).

Trataremos deste assunto, ainda que com a brevidade propícia a este nossa série “Registros sobre Registros”, por três aspectos distintos (os dois primeiros, versaremos agora; o terceiro, em nosso próximo artigo):

(i) o dos lapsos na própria atividade enunciativa das inscrições;

(ii) o da convivência do registrador com um mundo de “língua dinâmica”;

(iii) o do caráter formal do mais fecundo da vida registrária.

165. O erro na escrita, nos textos de todos nós, por lástima, ocorre, de fato, de quando em quando, e, às vezes, não só de modo recorrente, mas também, o que é pior, despreocupado.

Ao início de sua Réplica, logo após referir o paradoxo de Eça de Queirós, no Fradique Mendes, afirmar que “ninguém sabe escrever”, Rui Barbosa não pôde menos do que concluir de maneira realista: “uma verdade há que me não assusta, porque é universal e de universal consenso: não há escritor sem erros”.

Nem sempre, reconheçamos, a celeridade, que é uma das “favoritas da moda”, permite-nos cuidar da “sopa de letras” rememorada pelo nosso Gustavo Corção −a meu ver, um dos melhores, senão até o melhor dos literatos brasileiros. Corção, talvez pelo costume arraigado, que lhe vinha da infância, de arrumar as letrinhas de macarrão na beira dos pratos, adquiriu o “gosto pelas letras escritas devagar e com esmero”. Com vagar e com esmero… assim deve prescrever-se a escrita de todos: escrever com ponderação e primor, ter o gosto de conviver pacientemente com as palavras, até que elas digam o que queremos que digam.

Também isto deve aconselhar-se ao registrador. Que ele, enfim, nunca se expresse mal em suas inscrições, é dizer, que ele nunca se exprima sem precisão ou sem clareza nos atos de seu ofício. Porque, a falta de exatidão e claridade nas inscrições prejudica-lhes a compreensão e, de conseguinte, inocuiza a função de conhecimento registral (com efeito, esse conhecimento só tem sentido se alcançar seu propósito, ou seja, se seu objeto for compreendido).

A título de ilustração, poderíamos passear entre alguns casos registrais pitorescos de anomalias semânticas (p.ex., as descrições de imóveis retangulares que se desenham com sete lados…), inconsistências (os alugueres de um comodato…), redundâncias (as doações gratuitas), as ambiguidades (os mortos que adquirem direitos)… Arthur Nussbaum mencionara um exemplo, no registro germânico, em que o imóvel matriculado, por força de sucessivas segregações, era inexistente, mas que um erro de aritmética permitia sobreviver com um resto fictício de área.

Todos os que vivem no mundo registral têm boas histórias a contar disto que compõe uma espécie de inevitável (mas de algum modo saboroso) “folclore registral”. E neste capítulo de imputações de erros de escrita, consultemos tudo com muita prudência: “Qui sine peccato est vestrum, primus in illam lapidem mittat”…

166. Há uma condição, todavia, persistente e estrutural que intensifica a possibilidade do erro no registro. É que, sendo o registro um repositório de informações extraídas da realidade, não poderá mais do que recrutar indicações selecionadas de um imenso espectro de dados.

Em suma, quando menos, entre nós, com a Lei n. 6.015/1973, o registrador já não copia, já não transcreve ao modo de um amanuense; o registro, isto sim, capta, percepciona, compreende, interpreta, elege… e inscreve para publicar.

Ora bem, não se pode, para logo, evitar de todo os equívocos da captação e da percepção sensíveis, sequer os da memória. Jaime Balmes, a propósito, observou, com razão: “la experiencia enseña que los sentidos nos presentan los objetos diferentes, según que nuestro ánimo está prevenido de diferente manera”, e, entre nós, Dinio Garcia referiu, com sua emérita autoridade, que as mais “precisas” linguagens “científicas” somente podem reduzir as incertezas, não de todo evitá-las.

Acontece que ao registrador −a quem se incumbe a tarefa de, manejando títulos, captar uma realidade pretérita, percepcioná-la, compreendê-la, interpretar normas e fatos, eleger o que textualizar, escrever e publicar−, a esse registrador também compete, na dimensão pragmática de seu ofício, remeter-se a destinatários, e a eles encaminhar-se com um signo decifrável pelos destinatários: não lhe basta a mera sinalização porque dele se exige enunciar algo para permitir o conhecimento do objeto de conceito sinalizado.

167. Consideremos aqui um episódio frequente no Brasil: o das descrições imobiliárias objeto de antigas transcrições e que, embora respondessem a uma enunciação adequada a seu tempo (adequação sociológica, nota bene), perderam (i) ora seus elementos de identificação referencial −equivale a dizer, desapareceram os córregos, as figueiras, as pedras que se anunciavam nas descrições transcritas−, (ii) ora sua determinação lexical (que significam os termos “alcavala”, “amadígo”, “quaramollos”, “somitimento” e outros tantos alistados no Elucidário de Frei Joaquim Santa Rosa de Viterbo?).

Calha que a segurança jurídica esperada do registro impõe alguma sorte de permanência no tempo. Assim, em linha de princípio, o registro é uma conservadoria. Não no sentido de um museu encarregado de conservar fósseis −o registro não é uma oficina de taxidermia jurídica. Mas é um ofício de conservação, nisto que deve dar continuidade a estados jurídicos, deve zelar por sua permanência e por sua vitalidade. Assim, alterações de signos que ponham em risco de identidade e vida a situação jurídica estabelecida segundo a ordem legal configuram sempre modificações letais para o objeto da publicidade e conservação tabulares.

168. Detenhamo-nos aqui em um pequeno exemplo: o cuidado da permanência registral deve orientar, o mais possível, a adoção de novas linguagens registrais, as descritivas inclusive.

A questão não é simples: o registro não pode abdicar da convivência num mundo em que a linguagem corrente nasce, vive, sofre e morre. Mas a pergunta a fazer é esta: ¿deveria o registrador abandeirar-se ao pavilhão das “palavras à solta”, à anarquia da lingua derelicta, a um universo resignado a que les mots sont les maux?

A resposta dá-nos, com precisão, este nosso maior pensador atual da gramática, que é o filósofo Carlos Nougué: “Deixada à deriva, sem regras que a dirijam, como hoje querem muitos que, porém, o mais das vezes defendem sua tese sem nenhuma deriva, a língua seria como as águas de um rio, puro fluxo, ao ponto de não poder falar-se duas vezes como a mesma língua” (estas são as palavras com que Nougué inaugura o prólogo de sua Suma gramatical).

Está bem que não caiba ao registro reavivar o fóssil de um léxico ultrapassado, mas, por outro aspecto, não se deve admitir a abdicação de uma linguagem clássica em favor de uma terminologia de turno, de um jargão do cotidiano transitório, do caos de palavras reconstruídas de maneira ideológica.

Escreveu-se em outra parte: “Arte por semelhança, em virtude de sua analogia com as artes em sentido próprio (os hábitos produtivos de índole racional), a gramática é uma das sete artes ditas liberais, um saber −a exemplo da lógica, saber este que a subalterna proximamente−, sob certo aspecto, especulativo (…), mas, sob outro, prático (secundum quid speculativum, secundum quid practicum), e que, à vista de seu fim (quantum ad finem), prepondera como saber prático (magis practicum quam speculativum). (…) Contando-se ao lado da lógica (ou dialética) e da retórica entre as chamadas artes sermocinales −as artes lógicas ou do trivium−, a gramática é um saber intimamente ligado à lógica, porque não é possível o discurso humano sem a palavra. poderia pensar-se numa linguagem própria da lógica (e ela, com efeito, permeia as várias lógicas simbólicas), mas o desenrolar natural do pensamento exige uma linguagem ordinária, por meio de palavras que informem, representem e expressem o mundo interior não apenas aos especialistas em determinada metalinguagem lógica.”

Assim, a gramática é um conhecimento regulativo (ou normativo), bem por isto é uma arte (em sentido analógico) mais diretamente voltada à produção do literal e, de algum modo limitado, ainda à da linguagem falada: “a escrita (disse Nougué) é a parte das línguas que de si mais capacidade tem não só de conservar-se, mas de conservá-las”.

Ora bem, o que se espera da linguagem registrária é que ela ponha ao dia os conceitos já estabelecidos por uma linguagem que se vai alterando, mas não que os desconstrua para, na sequência, reconstruí-los “livremente”.

A propósito, deve-se a Romano Amerio esta muito aguda observação: a de que, nestes nossos tempos, a trivialização e a recorrência no mundo verbal correspondem, frequentemente, a um esvaziamento da realidade. Gómez Dávila, com sua costumeira contundência, falara mesmo em “hemorragia verbal”, e, como quer que seja, parece que os termos verbais, não raro, assumem agora um papel substituinte dos objetos de conceito no mundo real.

Por isto, fala-se em agnosia do pós-modernismo quanto ao universal e estável, acarretando que os tempos atuais se acomodem à prevalência da intentio lectoris sobre a intentio operis, ou seja, ao primado da superinterpretação (Umberto Eco). Hoje, com efeito, parece vivermos no mundo do hermeneutismo −no mundo em que as compreensões e as interpretações são incessantemente fluidas, lábeis, voláteis (eis o flou du droit de Mireille Delmas-Marty), conotações continuadamente referíveis a conteúdos infixos, oscilantes e, o que é pior, sem limites outros que os concebidos pelos intérpretes. Assim o disse Yvan Élissalde, “seule la main de Dieu arrête la plume de l’interprète”.

Mas este gênero de inconstância, de imprecisão, de hesitação pode arrastar à inutilidade de um registro que não tenha já a função de conservar, de estabilizar, de solidar, de custodiar a permanência da realidade. As revoluções são sempre assim: sonham, devaneiam e fantasiam fantasias, devaneios e sonhos, estas coisas que eram tão “boas” (quando muito) apenas ao tempo em que não existiam.

Prosseguiremos.