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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #19

(Princípio da publicidade -Terceira parte)

143. A contribuição dos registros para a res publica −esta que é o principal significado da noção de “publicidade registral”− exterioriza-se por meio da produção de documentos pelo registrador.

Documento é aquilo que docet −aquilo que ensina. Isto o disse Francesco Carnelutti, que também afirmou ser o documento uma coisa que representa um fato, uma coisa que docet outra coisa.

Se a representação de uma coisa nem sempre é exterior (conceitos mentais são representações intelectuais de coisas), já o documento, ao revés, representa externamente, de modo corpóreo, e, pois, é uma forma de intercomunicação humana. Calha mais que, ao documento, para ser representação social de uma coisa, não basta a corporeidade ou externação −a matéria em que e por meio da qual se representa um fato−, porque, sendo uma coisa que serve para representar outra (uma coisa que docet), seu objetivo é sempre o da representação futura de fatos que serão passado; daí que o documento exija permanência ou estabilidade, e acessibilidade ou cognoscibilidade.

144. O registrador produz documentos −na verdade, ele os age e os faz. Porque ele representa externamente coisas que, uma vez pretéritas, importam socialmente para o futuro. Age-os, porque antes de fazê-los, julga prudencialmente se deve fazê-los e como os deve fazer.

O registrador produz documentos de várias categorias e com efeitos jurídicos diversos: (i) o documento-matriz, (ii) o documento-cópia; (iii) o documento-decisório; (iv) o documento-procedimental.

O documento-matriz −actus originalis in tabula (ato original no registro) ou actus originalis in libros− é o assento livresco, a inscrição lançada nos livros registrais (inscriptio in libros redacta). No caso brasileiro, corresponde a todos os lançamentos inscritos nos Livros 1 a 5 do Registro de Imóveis (ou nos livros A a E do Registro Civil das Pessoas Naturais; A e B, do Registro Civil das Pessoas Jurídicas; A a D do Registro de Títulos e Documentos −cf. arts. 33, 114, 132 e 173 da Lei n. 6.015, de 31-12-1973). Põe-se de manifesto seu paralelo com a nota-matriz ou protocolar do direito notarial.

O documento-cópia (exemplum inscriptionis in tabula. exemplar instrumenti) é a transcrição, ou o resumo conveniente, ou um relatório fidedigno do documento-matriz (vide, o que dispõem, no Brasil, os arts. 19 e 21 da Lei n. 6.015).

O documento-decisório −sententia tabularii− é o expedido pelo registrador ao decidir determinado pleito (p.ex., no direito brasileiro: ao qualificar negativamente um título −nota devolutiva, arts. 198 e 280 da Lei n. 6.015/1973; ao julgar um processo extrajudicial de usucapião −art. 216-A da mesma Lei). Esse documento pode dizer-se de forma livre, mas que exige, no direito brasileiro posto, motivação extrínseca (arg. do item LV do art. 5º da Constituição federal de 1988, porque, de não se motivar a decisão, não se satisfaria o direito de ampla defesa previsto neste dispositivo constitucional). Averbe-se, a propósito, que a circunstância de admitir-se um documento sine publica forma não importa em que se negue seu caráter público (documentum per manum publicam factum).

Por fim, documento-procedimental é o exarado in itinere inscriptionis, sem caráter decisório; vale dizer, documento de mero expediente lançado na intercorrência de um procedimento de inscrição (p.ex., a abertura de um termo de vista nos feitos de retificação de registro, de usucapião na via extrajudicial, de incorporação etc.).

145. Essas diversas classes de documentos registrais convocam efeitos jurídicos diferentes (por amor à brevidade, trataremos aqui do tema somente no que respeita ao direito brasileiro atual).

Do documento-matriz do registro público em geral, no Brasil, tanto pode derivar, em alguns casos, a eficácia da fé pública, quanto, em outros, o efeito da legitimação registral, que é, segundo o consenso da doutrina, o ordinário no registro de imóveis (cf. arts. 252 da Lei n. 6.015/1973, e arts. 1.245, § 2º, e 1.247 do Código Civil de 2002; sed contra: a hipótese do Registro Torrens).

O documento-cópia possui sempre dúplice eficácia. Quanto a seu âmbito sintético, reveste-se sempre de fé pública (ou seja, a certidão frui da plenitude de fé quanto a sua correspondência com o documento registral que ela traslade, resuma ou relate). Mas, no aspecto analítico, seu conteúdo terá a mesma eficácia que corresponder ao assento copiado. Assim, no que concerne ao registro imobiliário, poderá haver tanto cópia com efeitos homogêneos (p.ex., uma certidão de um registro Torrens), quanto com efeitos heterogêneos: v.g., fé pública no plano sintético, legitimação registral, no analítico (assim, a certidão relativa ao registro de uma venda e compra).

O documento-decisório registral possui eficácia de fé pública sintética (autenticidade). Quanto ao aspecto analítico, no entanto, a questão é complexa: trata-se aí, é verdade, de um título que, expedido embora por oficial público, não provém de competência notarial e, pois, não atrai em seu favor a específica fé pública tabelioa. Prima facie, portanto, parece que o documento-decisório extraído pelo registrador é, analiticamente, dotado, embora, de valor probatório, destituído de fé pública quanto a seu conteúdo (de que segue poder impugnar-se em via administrativa; isto se põe à mostra com o quadro brasileiro da dúvida registral: arts. 198 et sqq. da Lei n. 6.015/1973). Situação símile aparenta corresponder ao documento-procedimental do registro.

146. Na produção desses variados tipos de documento, o registrador atua ora ao modo de um artista, a bem dizer, de um técnico (p.ex., ao copiar integralmente uma inscrição para extrair um certificado), ora com saber prudencial, que é o próprio da qualificação e o mais elevado da função registrária. Nesta última situação, o registrador faz o documento, é verdade, mas, antes disto, age, ou seja, julga juridicamente se deve fazê-lo e como deve fazê-lo.

Este é o objeto próprio de um segmento do direito dos registros −a morfologia registral−, que estuda as inscrições in itinere, quer dizer, em seu processo de elaboração.

Não são seu objeto os registros já ultimados, nem os títulos em formação (matéria própria da morfologia da titulação).

Assim, a morfologia registral versa os títulos inscritíveis já formados e somente títulos em acepção formal (ou seja: documentos), porque cabe ao direito registral substantivo o estudo dos títulos em sentido material (causas jurídicas: fatos, quais a morte, a avulsão, a aluvião, o álveo abandonado; atos, assim, o da renúncia abdicativa a um direito de servidão; negócios jurídicos (dação em pagamento, doação, alienação fiduciária, permuta etc.). Tem-se aí uma parte da morfologia registral dedicada aos elementos extrarregistrais. Outra parte desta disciplina devota-se aos elementos registrais (como e quando se fazem a prenotação, a matrícula, a averbação etc.).

147. Os títulos já formados e acessíveis aos registros são, quanto a sua gênese, notariais (escritura, ata, traslado, certidão), judiciários (cartas de sentença, de adjudicação, de arrematação, mandado, formal de partilha, ofício, certidão), administrativos, legislativos, eclesiais (p.ex., bula papal), registrais (certidão) e particulares.

Alguns desses documentos são, relativamente ao registro, títulos principais; outros, são acessórios (v.g., os documentos fiscais anexados a uma escritura notarial).

Esses títulos são submetidos à qualificação registral, com o controle dos elementos próprios de cada título −a saber, competência de origem, observância dos requisitos de forma, satisfação dos supostos registrários (p.ex. continuidade dos registros, especialidade objetiva, subjetiva e do fato).

Há conhecidos espaços de controvérsia −para não dizer, de beligerância dialética− no que respeita à qualificação registrária, sobretudo quanto aos títulos notariais e judiciais. É certo que ao denegar o registro de um título, o registrador não os impugna, nem os anula; mas, com não inscrevê-los, é verdade, resiste a uma eficácia que, de comum, eles revestiriam.

A solução do problema passa, frequentemente, pelo discrimen dos vários capítulos dos títulos. Tome-se aqui em linha de exemplificação, uma escritura notarial. De par com a eficácia sintética que atrai a fides publica −e, pois, repulsa a qualificação registral−, a escritura pode possuir não apenas capítulos alheios da fé pública notarial (pense-se no tema do conteúdo de declarações dos outorgantes), mas, além disso, colidir com supostos próprios do registro (p.ex., vício de descrição do objeto predial, deficiência de consecutividade etc.).