Notícias

  • HOME
  • Ricardo Dip: Registros sobre Registros #17

Ricardo Dip: Registros sobre Registros #17

(Princípio da publicidade -Primeira parte)

128. O princípio da publicidade registral não se exaure na compreensão mais direta e comumente a ele assinada, qual a de possibilitar o amplo conhecimento das inscrições no ofício predial.

Embora este seja, efetivamente, o fim próximo a que se remete o princípio da publicidade do registro, há nele um fim remoto e que lhe é muito próprio, dir-se-ia que próprio “à letra mesmo”. É que o termo “publicidade” é o abstrato correspondente ao adjetivo “público” (ou seu feminino “pública”), de maneira que o princípio da publicidade registral também se justifica por direcionar-se à satisfação da res publica.

Assim, a primeira parte desta exposição sobre a publicidade registral cuidará de alinhavar algumas tantas considerações acerca do conceito geral de “publicidade”.

129. Em sentido comum −ou seja, no usus loquendi−, o vocábulo português “publicidade” veicula, sobretudo, suas funções cognoscitiva e difusora que consiste em “tornar público”, “dispor ao público” determinados fatos (e, tratando-se dos registros, pensa-se em tornar públicos atos inscritos e os documentos que os integram ou instruem).

Nosso vernáculo “publicidade” advém, proximamente, de um adjetivo latino de primeira classe (publicus, a, um), do qual provieram também, no âmbito lusófono, “publicaçom”, “publicano” e “publicamento” (séc. XIV), bem como, no século XVI, “publicador” (séc XVI); Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo registra, no Elucidário, a palavra “pubrego”, que sustenta de frequente uso nos séculos XIII a XVI.

O verbo latino publico (infinitivo publicare) é tornar público, dar ao público, e o latim registra ainda os advérbios publice (para todos) e publicitus (em nome do povo, em nome do Estado), de sorte que, em geral, pode entender-se que publicus é o que concerne ao povo em seu conjunto. Em uma de suas acepções, “público” significa, na origem, pôr à disposição do povo; daí que em Plínio, o Velho (23-79 d.C.), haja referência às loca publica, ou seja, aos lugares públicos, estradas públicas, bens postos à disposição do povo.

Embora, ao largo da história, haja uma nota política frequente na expressão “público” −um exemplo disto é que o scriba ou scriptor, na România, só se chamará notarius publicus com a delegação, na Baixa medieval, da fides publica pela autoridade política−, o termo publicus concerne tanto ao povo, considerado em si próprio (é dizer, enquanto koinonía, comunidade, agrupamento humano dotado de soberania social), quanto ao povo, enquanto se representa politicamente (hoje se falaria em “Estado”, ou seja, o detentor de um poder qualificado pela soberania política). Relevante neste passo é observar o parentesco do vocábulo publicus com os termos poplicus e populus (povo, conjunto dos cidadãos): Ernout e Meillet indicam que publicus é o adjetivo correspondente a populus. Em resumo, o vocábulo publicus abrange duas derradeiras instâncias de ordenação da comunidade: uma, a soberania social, radicada nos grupos intermédios entre o indivíduo e o Estado; outra, a soberania política, própria do Estado. Disto resulta que nem todo “público” seja “estatal”, erro frequente nos tempos contemporâneos.

Mas se aprofundarmos um tanto a sindicância do étimo, veremos que o termo latino publicus deriva de pubes, pubis, vale dizer, “púbere”, “adulto”, “o que já atingiu a maturidade”, tanto num aspecto quantitativo −o conjunto do número dos homines puberes−, quanto no de qualidade: pubes é o adulto maduro, aquele que, por força de sua sabedoria, tende a um bem maior que o individual, inclina-se ao bem de todos (res publica, a coisa pública ou coisa de todos: o bem comum).

A res publica é o bem pessoal mais elevado dos que vivem na civitas. Anote-se que a ideia de respublica −no sentido clássico de Nação ou Estado− não se confunde com as noções de “democracia” ou de “forma de governo republicana”. Em toda forma de governo é, em princípio, possível favorecer a res publica (o bem comum) ou atuar em seu detrimento: julgar da bondade ou maldade de um governo é avaliar se ele procura o bem comum ou, diversamente, se atende a interesses que não são comuns, mas privados.

Bem comum (ou bem público) não é, pois, o mesmo que bem estatal: o Estado é apenas uma parte da sociedade política, uma parte superior que o seja, mas parte e não todo.

130. Cogitar, portanto, do princípio da res publica não é pensar no interesse estatal, senão que, isto sim, no interesse da comunidade em seu todo. Disto advém que esse princípio seja o mesmo que princípio da totalidade.

Na civitas, o bem comum (a res publica) tem primazia sobre os bens particulares (ou seja, sobre os bens parciais, bens das partes), na medida em que as partes se ordenam ao todo. Mas, os homens, vivendo em sociedade, não se ordenam ao todo social segundo todo seu ser de homens, nem segundo tudo o que é de seu domínio; não fosse assim, estar-se-ia diante de um regime comunal totalitário (isto é, sem autonomia das partes), de um “despotismo administrativo” (na linguagem de Polin).

Deste modo, pois, o princípio da totalidade não abrange o caso de os súditos e seus bens se submeterem integralmente ao Estado. O que o princípio da totalidade compreende é a nota cardeal de que o ser e o bem da parte se ordenam ao ser e ao bem do todo, ou seja, de que o bem particular se ordena ao bem do todo à maneira de seu fim: “o bem do todo é melhor do que o bem das partes”; “a bondade de uma parte aprecia-se em função do todo” (S.Tomás de Aquino). Isso −que implica assentar a primazia do bem comum sobre o bem privado− não significa, entretanto, supor que os homens se instrumentem, segundo toda sua pessoa e todos seus bens, a um submetimento plenário ao todo estatal, porque aí já não se poria em linha de discussão o primado do bem comum, porque exatamente se daria a violação do conceito de comum, recusado diante do sacrifício arbitrário de alguns em proveito de uma parte, o Estado: e que o Estado seja parte, e não o todo da comunidade, isto já o acentuava, graficamente, Harold Laski, teórico do socialismo inglês.

Conclui-se, pois, que o princípio da primazia da res publica possui limites postos pela própria natureza política do homem, que não vive só em única e grande sociedade, mas, isto sim, convive em muitas sociedades (família, grêmios profissionais, universidade, município, etc.), todas elas com sua função de unificar e estruturar, harmonicamente, a ordem social.

131. A publicidade registrária está ordenada à res publica. Este é o mais relevante sentido do princípio da publicidade nos registros, o de sua ordenação ao bem comum, que eles tratam de satisfazer por meio da segurança jurídica (é dizer que esta última, a segurança jurídica, fim do registro, é, no entanto, sob certo aspecto, um meio para a consecução do bem comum).

Assim, “tornar pública” uma inscrição é não só dar-lhe a possibilidade de ser conhecida de todos, mas, principalmente, de, com isto (sobretudo: expressão e difusão), realizar a res publica.

Por mais comum seja o uso da expressão “publicidade registral” com o sentido de cognoscibilidade pública dos atos registrários, isto não implica desconhecer e desconsiderar a influência de outras de suas acepções, mormente seu sentido prioritário, que é o da consecução da res publica.

132. O conceito de “publicidade” é analógico (analogia de proporcionalidade própria) e, no caso da publicidade registral, abrange, de comum, os sentidos de:

(i) investidura (próprio do direito organizatório dos registros: assim, no Brasil, há indicação expressa de que aí se trate de um serviço público delegado −caput do art. 236 da Constituição federal de 1988);

(ii) exercício de potestade pública (potestade-função): potestade frequentemente inalienável, intransmissível, e imprescritível;

(iii) documentabilidade (i.e., “público” é o que se destina à confirmação, à prova; “documento público” é o que faz prova plena, prova “pública”, para “todo o povo”);

(iv) expressividade (informatividade; ou seja, a instrumentação sígnica indispensável para viabilizar a tarefa confirmatória);

(v) cognoscibilidade (propiciação da possibilidade de conhecimento);

(vi) compreensibilidade (ou significância); este é um dos temas de grave importância nos tempos atuais, porque há um desconstrucionismo concertado que se dirige, às vezes até de maneira confessada, à tarefa de dar “ressignificações” ideológicas a termos e fatos;

(vii) acessibilidade ou suscetibilidade de adquirir direitos (o “direito político de ter direitos”; o acesso ao registro é público, é “para todos”);

(viii) o bem comum ou bem geral, que é o primeiro analogado da “publicidade”, seu prius analógico.

133. É interessante concluir esta nossa primeira parte do tratamento do princípio da publicidade registrária pondo em destaque a relevância social do registrador, que, ao cumprir seu ofício, com idoneidade jurídica e honradez moral, custodia bens −pessoais e patrimoniais− que são indispensáveis para a realização do bem comum.

Os antigos diziam que repetitio mater studiorum est −a repetição é a mãe dos estudos−, e isto parece autorizar que ainda uma vez se insista aqui na sábia referência de Antonio Monasterio y Galí à Magistratura da paz jurídica: os registros públicos são, exatamente, tanto quanto os órgãos notariais, entes cooperativos dessa paz jurídica, órgãos destinados a subsidiar e conservar a tranquilidade na ordem −pax omnium rerum, tranquillitas ordinis [est] −−a paz de todas as coisas [é] a tranquilidade na ordem−, assim consta da memorável passagem da De civitate Dei do gênio de Hipona.

Prosseguiremos, dedicando nosso próximo pequeno artigo, de modo especial, ao tema do objeto da publicidade registrária.