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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #14

(Princípio da inscrição -Parte quinta)

100. Declarativa diz-se a inscrição imobiliária que, ainda tendo por objeto um título (em acepção formal), exprime, no entanto, um direito já constituído. Essa inscrição específica -na qual prepondera o fim declaratório- é sempre um post factum constitutivum (ou um post rem), e ela não integra, de nenhum modo, a substância do direito a que se refere (a título de exemplo, pense-se na inscrição civil do nascimento e da morte, fatos que só podem aceder ao registro, obviamente, depois de que tenham ocorrido na realidade das coisas; no mesmo sentido, a usucapião, a divisão, a sucessão causa mortis).

101. O vocábulo “declaração” provém do latim declaratio, declarationis: é (i) a manifestação ou pronunciamento, cujo conteúdo (ii) torna claro ou manifesto: o adjetivo clarus, clara, clarum refere o “claro”, o “que brilha”; o verbo exclaro significa “esclarecer, iluminar”; e, propriamente, “declaro” é verbo que vale por “anunciar em alta voz” (Ernout-Meillet) -ou seja, enunciar, proferir, manifestar de maneira intensa (com efeito, entre os vários sentidos do prefixo latino “de”, encontram-se os de “perfeição”, “acabamento” e “intensidade”).

102. Bem se avista que uma inscrição com predomínio declarativo, na medida mesma em que se volta a aclarar (em oposição ao “obscuro”), dá alguma notícia, e neste passo há uma imbricação inevitável com algum aspecto do escopo da inscrição de mera notícia. É por isso que se diz que a inscrição declarativa é predominantemente de fins declaratórios, sem excluir seu estrato -logicamente anterior, mas temporalmente simultâneo- de ser também uma “notícia”.

103. Mas uma coisa é que se reconheça não exercer a inscrição (de preponderância declarativa) o papel de motus para a passagem da potência do título ao ato do direito que se constitui (o registro declaratório não é causa aquisitiva), e outra, muito diversa, está em supor que da inscrição com predominância declarativa nenhuma eficácia haja apud substantiam.

Essa inscrição com prevalência declarativa é, de comum, obrigatória -ou, quando menos, um ônus-, sendo ordinário que do registro, ut in pluribus, emerja a oponibilidade de um direito imobiliário em face da inscrição que favoreça um terceiro. Esta eficácia de oponibilidade cibtra todos deixa à margem algumas hipóteses, assim a dos interditos possessórios e a da transmissão mortis causa. Nada obstante, em geral, sempre segue possível afirmar-se que um título não inscrito, ressalvadas, pois, restritas exceções, seja inoponível a todo legitimado tabular (ou seja, a todo titular de um status secundum tabulam).

104. Nesse quadro poderá ter-se a tentação de considerar o registro uma espécie de validação extrínseca do título (sua corroboratio tabularii), mas, efetivamente, o que se dá é que o registro de prevalência declarativa atua como condição positiva para o exercício pleno dos atributos do direito correspondente: assim, p.ex., a inscrição declaratória de um título de sucessão mortis causa habilita o atributo da disponibilidade (ius abutendi) do direito dominial do sucessor; a inscrição declarativa da divisão de um condomínio -com ou sem reposição, não importa- permite que haja titularidade singular, clara e determinada sobre partes certas de um dado imóvel, propiciando a disponibilidade ut singuli seja do próprio direito, seja da coisa objeto desse direito (admitida aqui a assimilação do direito com seu objeto, entendimento adotado já no direito romano).

105. Desse modo, a inscrição declarativa permite, ela também, que se realize, no plano do sistema da publicidade jurídico-imobiliária, a tarefa de controle formal das alienações e onerações a non domino.

Com efeito, o princípio nemo dat quod non habet -ninguém dá o que não tem (ou, na mais completa expressão de Ulpiano: nemo plus iuris transferre potest quam ipse habet)-, não exigiria, materialmente, o registro de um título bastante ao direito constituído extra et antequam tabulam (ou seja, um direito constituído à margem e antes do registro; realce-se que a inscrição, ainda a declarativa, é sempre do título; não o é, pois, do direito já constituído). Todavia, a adoção de um sistema de direito formal, assim o do registro de imóveis, impõe o controle publicitário também de (alguns) direitos constituídos extra tabulam e isto ele o faz por meio da técnica do trato consecutivo (ou, como a alguns soa preferível dizer, “mediante a continuidade”).

Por isso, embora a inscrição predial declarativa não seja inerente à substância do direito objeto, junta-se a esta última sob modo acidental (ens in aliud), condicionando a alienação e a oneração do bem imóvel a que concirna, não porque falte, diretamente, ao titular desse direito a plenitude substancial de atributos do mesmo direito (é dizer, não haveria possível ofensa material do nemo plus iuris), mas, sim, porque o acesso desse direito ao sistema formal da publicidade imobiliária é o que permite o exercício do atributo dominial da disponibilidade (ius abutendi).

106. Entre diversas questões de relevo na esfera das inscrições imobiliárias predominantemente declarativas contam-se as que se referem às determinações negativas dos direitos reais correspondentes.

De par com as especificações positivas dos direitos reais (assim, os atributos de agir, fazer e abster-se -exemplo deste último dá-nos a abstenção imponível com a servidão negativa-, e a demarcação material do objeto do direito -o que emerge com sua determinação e as especializações de qualidade, de quantidade e de lugar circunscritivo), há também determinações negativas do conteúdo dos direitos reais, ou seja, previsões exclusoras de atributos quanto a estes direitos.

Algumas dessas determinações estão previstas em lei (são designadas de limitações: p.ex., a inibição de transferir o direito de usufruto, tal o dispõe o Código civil brasileiro, em seu art. 1.393; a obrigação de o condômino contribuir para as despesas de conservação ou divisão da coisa -art. 1.315), outras, todavia, advêm de pactos privados (são chamadas de restrições ou também de cargas reais: assim, as posturas autônomas quanto à edificação, frequentes em loteamentos; a cláusula de vigência locatícia; a multipropriedade; a disciplina das convenções condominiais).

107. Parece razoável, de logo, admitir que as limitações (quer dizer, as determinações negativas provenientes, directe, da própria lei) não demandem inscrição declaratória para sua efetividade. Ou melhor: sequer as permitam. A publicidade legal frui da mesma nota de conhecimento presuntivo de que goza a publicidade no registro. E o registro desnecessário é ilegal. Diversamente, quanto às restrições, elas não desfrutam a presunção (ou ficção) de conhecimento, e, pois, devem aceder ao registro.

Ocorre que num sistema jurídico positivo, tal o brasileiro, em que os direitos reais são contados (ou pensam contar-se) em numerus clausus e sob rígida tipologia, será preciso considerar a regência expressa da lei -e não o contrato das partes- para constituir-se e reconhecer-se um direito real (o regime de numerus apertus e de atipicidade jurídica, no campo dos direitos patrimoniais, é limitado, no Brasil, ao direito obrigacional: art. 425 do Código civil).

Isto ostenta reflexos no plano da extensão de uma possível oponibilidade a terceiros (a oponibilidade erga omnes) que, no terreno do direito patrimonial, é própria dos direitos reais. A este propósito, Luciano de Camargo Penteado observou que a diversidade de regimes dominiais -propriedades individuais, em condomínio de tipo germânico ou românico, em loteamentos, ou sob a regência do time-sharing- justifica a diferença de tratamento jurídico nas várias situações restritivas (ou seja, de cargas reais, situações que respondem a um regime de disciplina acomodada a negócios jurídicos, ainda que secundum legem, mas restrições que não têm a lei por fonte constitutiva direta).

Cabe, então, discutir sobre a natureza da inscrição das várias restrições, porque não se exclui possa a lei remeter a convênios privados a instituição de cargas reais, e, nesta hipótese, admitir-se o caráter erga omnes da oponibilidade das restrições correspondentes (vide, p.ex., o tema das “restrições urbanísticas convencionais do loteamento, supletivas da legislação pertinente”, previsto no inc. VII do art. 26 da Lei n. 6.766, de 19-12-1979).

108. Diversamente, no que diz respeito à propriedade compartilhada, ou, como também se diz, à compropriedade de habitação periódica, por míngua de lei que expressamente contemple a limitação temporal ou a só possibilidade de convencioná-la com eficácia real -predicado essencial a esta multipropriedade-, é de todo controverso definir se sua inscrição (que, de toda sorte, parece ser admissível) tem finalidade declarativa ou de mera notícia.

No primeiro caso, reconhecer-se-ia a natureza real na parte jurídica do conteúdo de compartilhamento temporal da utilização do imóvel, o que implicaria afirmar sua oponibilidade erga omnes (e, o que muito importa, sua obrigatoriedade a futuros adquirentes, até que se pactuasse tratamento diverso); no segundo caso, cuidar-se-ia apenas de tornar pública uma convenção que operaria somente efeitos inter partes.

Prosseguiremos.