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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #05

(Princípio da segurança jurídica – Parte segunda)

26. Por mais, a segurança jurídica, enquanto finalidade do registro público, atue na iluminação e direção dos meios procedimentais das inscrições, ela é, como ficou dito, um objetivo tanto singular (cada registro), quanto integral (todo o sistema do registro).

Dessa maneira, a segurança jurídica aperfeiçoa-se em um estado de consecução objetiva atual −o perfazimento de cada inscrição (res effecta)−, sem, contudo, exaurir sua potencialidade sistêmica (registros futuros − registra futura). Por outro aspecto, o da certeza, a segurança jurídica efetiva-se pela possessão subjetiva rei effectæ (é dizer, do registro realizado), seja que isto se dê mediante presunção absoluta (fé pública registral), seja por meio de legitimação registrária (assim, o direito brasileiro vigente: cf. arts. 1.227 e 1.245 do Código Civil de 2002, e 252 da Lei n. 6.015/1973, de 31-12).

27. A certeza jurídica que secunda a segurança objetiva em que se alicerça o sistema registrário deriva de, no quadro amplo de pretensões de dinâmica registral, assegurar-se o prévio consentimento (ou, quando menos, a anterior audiência) dos titulares inscritos, de sorte que ninguém seja privado de um status registral sem que haja regular observância dos processos legais correspondentes.

Para o caso brasileiro há mesmo uma garantia de caráter constitucional, com a previsão do direito de defesa e de contraditório também no âmbito do processo de caráter administrativo (vide inc. LV do art. 5º da Constituição federal de 1988).

28. A conflitividade possível entre os interesses da estática registral e os da dinâmica imobiliária é assunto de funda relevância política.

A tese que propugna a preferência dos interesses da segurança dinâmica é frequentemente indiciária de uma concepção econômica liberal (em resumo, numa frase: “o registro imobiliário deve ser o custódio do crédito”).

Em oposição, a tese que sustenta a vantagem prioritária da segurança estática do registro apoia-se na ideia do imóvel como lugar de radicação humana e fator relevante para a garantia das liberdades concretas.

Com a primeira tese, o imóvel mobiliza-se, vale dizer, constitui um veículo de garantia creditória. Essa acolhida da tese liberal de preferência da segurança dinâmica traz consigo o reflexo de prestigiar a equivalência entre propriedade e função social, redução que frequenta as ideologias socialistas, para as quais a propriedade não tem função social, mas, sim, é uma função social, disto advindo que seja amplamente restringível e até suprimível.

Diversamente, com a ideia de prevalência da segurança estática, sustenta-se que o imóvel preserva sua natureza real e cumpre a missão de ser o locus de enraizamento humano (cf., a propósito, as lições do muito autorizado urbanista argentino Patricio Randle). Nesta linha, tem-se que os homens, por sua natureza, tendem a enraizar-se (enracinement; rooting) em um sítio determinado, ou seja, a sedentariedade é algo secundum naturam hominum, e o nomadismo, uma exceção na história humana, induzida por necessidades peculiares (esgotamento de recursos naturais, erosão, secas, inundações, invasões hostis etc.) − eis a noção corrente do aforismo my home, my life; my home, my treasure.

29. A segurança dinâmica não pode considerar-se separada da garantia estática do registro.

Com a segurança estática (ou, por outro aspecto, a segurança do status jurídico publicado), protege-se o titular inscrito contra modificações que, na correspondente situação jurídica, sejam a ele desfavoráveis, garantindo que a essas modificações concorra sua vontade ou seja ela substituída segundo a lei (é dizer, observado o devido processo legal).

Por meio da segurança dinâmica (ou segurança do tráfico) patrocinam-se o comércio e o crédito, inibindo-se que adquirentes e credores (com garantia real ou em vias de obtê-la) possam prejudicar-se por circunstâncias não constantes do registro.

É manifesta a possibilidade de antinomia desses elementos finalísticos, e é isto que reclama apurar qual das espécies de segurança, estática ou dinâmica, há de prevalecer quando instaurado um conflito entre elas.

30. A finalidade externa que justifica os registros prediais é a de tornar cognoscíveis as limitações do domínio não dotadas de visibilidade intrínseca (v.g., hipoteca, servidões não aparentes, penhor sem deslocação possessória).

Esse finis externus do registro imobiliário comporta-se ao modo de um importante finis operantis, mas não esgota a finalidade dos registros prediais: o finis operis destes registros, além de, in itinere, abranger os interesses do comércio e os do crédito que busquem garantir-se com bens imóveis (segurança dinâmica), tem de proteger os interesses dos titulares inscritos (estática). Ainda, portanto, que o antecedente histórico do registro real seja o de um primado intencional relativo à proteção do tráfico, calha que a execução do sistema registrário não pode prescindir da concentração da tutela de ambas as seguranças, a estática e dinâmica, e assim a questão não se solve pela cronologia de finalidades perseguidas com o sistema.

31. A primazia da segurança estática do registro imobiliário deriva, entre outros motivos, da inconveniência política e econômica da mobilização do solo – que implicaria ofensa da natureza da instituição da propriedade imobiliária: o “espírito do burguês decimonônico” – tal o apontou Werner Sombart, com as notas de afeição à grandeza corpórea e sensível, à rapidez de movimento, ao gosto pela novidade e ao sentimento de poder – acarretou historicamente o endividamento, a pulverização e o egoísmo da terra (neste sentido, sobretudo Hedemann e Vallet, este, em seus valiosos Estudios sobre derecho de cosas).

Calha ainda salientar a vantagem resultante de um sistema que acautele diretamente a estática registral, porque a segurança dinâmica esperada do registro permanece sempre secundária à garantia estabilizada: com efeito, antes da aquisição dominial ou da constituição de direito real menor sobre um imóvel, a segurança dinâmica é mera confiança na segurança estática; e depois da inscrição aquisitiva, ela só repercute em relação ao passado − ou seja, na eventualidade de litígios sobre direitos anteriores−, porque o adquirente ou credor com garantia real, uma vez inscrito seu título, passa a fruir, ordinariamente, da proteção contemporânea conferida à estática.

32. Convém sublinhar, em reiteração, que a segurança estática do registro −na medida mesma em que é afirmada pelo direito positivo (e não haveria forma de admitir uma efetiva asseguração extra legem)− impõe-se sobre todo o iter registral e beneficia, directe, todos os sujeitos inscritos no espaço tabular.

Exemplo gráfico da robustez desta garantia registral pode apontar-se com o tema da aquisição imobiliária pelo Estado mediante expropriações.

Trata-se de um caso de sujeição, concernente a um direito potestativo estatal (potestas deiectionis), cujo exercício, todavia, não se autoriza contra legem, de sorte que a via de fato (ou seja, o apossamento administrativo) é sempre um ato ilícito: que não comporte ele um remédio reivindicatório é questão muito diversa da do reconhecimento da licitude de uma investidura possessória sem a regular observância da lei: o apossamento estatal não é o mesmo que a dominialização, ipso facto, do bem apossado.

Vai-se além: a potestade expropriatória não imuniza o poder público do dever de observância da legalidade, e, neste âmbito, não o libera do dever de respeitar o sistema ordinário da segurança jurídica do registro.

Daí que a expropriação demande o resguardo do devido processo legal (quer judiciário, quer na trilha do que se designa −impropriamente− “desapropriação amigável”), é dizer: exige-se que se dê audiência, com ensejo de consentimento ou oportunidade de defesa e de contraditório, a todos os titulares inscritos com direitos sobre os bens expropriados, saliente que só se conclui a aquisição dominial pelo poder expropriante com o ato de registro, não antes dele, não com a só sentença na desapropriação judicial ou com a escritura de “expropriação amigável”.

Para o direito brasileiro atual, não teria mesmo sentido que a expropriação operasse efeitos aquisitivos em ofensa da legitimação registral (art. 252 da Lei n. 6.015/1973), sem observar-se, pois, o devido processo legal que reclama a vocação de todos os titulares registrais do imóvel afligidos por vicissitudes jurídicas (perda ou oneração de direitos), processo de que não se exclui o exercício do poder expropriatório. Trata-se aqui de várias quæstiones disputatæ, é verdade, mas, sem embargo, não se aparte da vista que, se há perdimento do domínio predial pela desapropriação (arts. 1.275, inc. V, e 1.228, § 3º, do Código Civil), sua correspondente aquisição não tem de operar ipso facto, e, ao menos (nota bene: ao menos!), considerando-se o caráter derivado da expropriação (dita) amigável (neste sentido, p.ex., Saeaba Fagundes, Pontes de Miranda e, last, but not least, Luis Paulo Aliende Ribeiro), a aquisição correspondente pelo expropriante só se dá mediante o registro do título formado com observância do devido processo legal − judiciário ou em via de consenso.