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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #01

REGISTROS SOBRE REGISTROS (n. 1)

Des. Ricardo Dip

1. Pensa-se iniciar-se aqui uma série de pequenos artigos intitulada “Registros sobre Registros”.

Projetam-se nela, com periodicidade semanal, breves estudos sequenciais −e com propositada recorrência em alguns pontos, porque se trata de publicações na rede informática voltadas ao intento de discutir temas acumulativos, de sorte que alguma repetição favoreça a lembrança dos assuntos e, com ela, a depuração e o aprofundamento da matéria estudada.

2. Começaremos pela ordem das coisas e por seus princípios: in principio erant principia et ordo.

Vai nisto, por evidente, uma paráfrase da sentença joanina “in principio erat Verbum”. Já Rafael Núñez Lagos se valera de símile recurso, assentando que “en el principio fué el documento”.

Mas qual, na mitologia grega, em que Hefesto criara, por ordem de Zeus, usando de argila e água, o corpo da primeira mulher −de beleza ímpar, Pandora−, e só tempos depois foi que a deusa Athena lhe atribuiu alma (e vida, portanto), também aqui cabe admitir que o documento esteve, materialmente, ao princípio das coisas sociais, mas ao modo de um corpo deficitário, pendente de ânimo e vitalidade, ambas, vitalidade e ânimo, que lhe foram sendo conferidos apenas quando o documento veio a conhecer, de modo paulatino, os redatores especializados (scribæ) e outros profissionais que souberam, competentemente, cumprir, com aprimoramento paciente, as funções de textualizar, difundir, informar, comunicar e publicar o documentum.

3. Que são os princípios do registro público (principia tabulæ publicæ)?

Antes mesmo disto, vejamos um pouco os princípios dos princípios (principia principiorum).

O vocábulo “princípio” advém do latim principium, principii, palavra latina neutra, cujo núcleo significante é o de origem, começo, primeiro lugar, primeira parte, primeiro posto, de que seguem as noções adjetas de supremacia, prioridade, primazia, superioridade, e, extensivamente (Ernout-Meillet), as de chefe, autor, de onde vem que o primeiro do Imperium (romano) seja o príncipe, e que “o mais importante” seja o principal. Acrescente-se que, em grego, a ideia de princípio remonta a arché (ordem): o primeiro, o que ordena ou comanda, o que tem o primado, o ente maior de que dependem outras realidades.

Mais além, todavia, destas brevíssimas incursões etimológicas, convém referir que, já no século IV antes de Cristo, Aristóteles distinguia nos princípios os pontos de partida ontológico (daquilo que uma coisa é), prático e poiético (de como uma coisa se age ou se faz) e gnosiológico (de como uma coisa se conhece).

Bem se vê que essa amplitude conceitual aristotélica suplanta em muito a limitação que, em nossos tempos, provém da polaridade normativistaentre princípios e regras, nos termos adotados por Dworkin, e a que, de um ou de outro modo, vieram a concorrer várias teorias (p.ex. as de Esser, Bobbio, Wroblewski, MacCormick, Carrió, Alexy).

4. Na linguagem comum, princípio é aquilo de que procede o ente, a ação, a obra ou o conhecimento −“…nomen ‘principium’ nihil aliud significat quam id a quo aliquid procedit: omne enim a quo aliqud procedit quocumque modo, dicimus esse principium…” (S.Tomás); “aquilo de que alguma cousa de qualquer modo depende” (Leonardo Van Acker); “aquilo de que algo, de qualquer maneira, procede ou resulta” (Goffredo Telles Júnior); “aquilo do qual uma coisa procede, seja de que modo for” (Régis Jolivet); “tout ce qui est premier ou arrive premier” (Louis De Raeymaeker); “aquello a partir de lo cual se origina algo” (Juan Alfredo Casaubón).

Com essa largueza realista de acepções (ao revés da restrição ideológica das teses normativistas), o termo “princípio” abrange todo o gênero de causas do ser, do agir, do fazer técnico ou artístico e do conhecer, e ainda princípios não causais (ex. condições e ocasiões).

5. Toda essa diversidade principiológica deve estimar-se numa teoria dos princípios registrais.

Uma verdadeira ciência tem de conhecer as causas de seu objeto. Classificá-las. Relacioná-las. Pô-las no ambiente de suas condições e ocasiões, de seus limites, sejam os naturais, sejam os provenientes do direito determinativo posto. E, o que é mais, considerar um ponto agudíssimo: o de que nenhuma ciência prova seus próprios princípios. Temos de lançar-nos a saberes subalternantes.

Os princípios registrais, até para honrá-los, penso eu, devemos sindicá-los, defini-los, depurá-los de equívocos, aprofundá-los, dividi-los, excursionar em suas aplicações: é a isto, missão difícil, dificílima, que tentaremos devotar esta série “Registros sobre Registros” −série primeiramente dedicada, ex corde, aos “registradores de aldeia”−, muito convicto estando eu de que só posso acercar-me a pouco e pouco da verdade, com imenso esforço e sofrimento, e só enquanto eu reconheça a humildade de meu intelecto − tantummodo servus inutilis sum.