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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #11

(Princípio da inscrição -Parte segunda)

77. Antes de passar ao estudo dos efeitos perseguidos com a inscrição imobiliária −ou seja, o valor jurídico das inscrições para a aquisição, a modificação e a extinção (sobretudo) de direitos reais−, versando também sobre sua natureza e acerca do tema de sua compulsoriedade ou voluntariedade, convém insistir um tanto no problema relativo à sinalização, expressão e comunicação pela inscriptio tabularum.

Com efeito, em que pese à possibilidade técnica, em nossos dias, de essa inscrição, nos registros públicos, efetuar-se por meio de textos, sons ou imagens, prevalece largamente o uso dos signos literais (palavras escritas), que são signos sensíveis dotados de funções semântica e vicarial, cuja significação refere ideias −produtos da primeira operação do entendimento: aprehensio simplex rei−, e não imagens.

A palavra, pois, presenta, de modo imediato, um conceito objetivo, e substitui (por isto, ela se diz vicaria) o ente compreendido nesse conceito; sua matéria, na palavra escrita, é a notação (o som, na palavra oral); sua forma, o significado. Disso resulta não serem as palavras, ordinariamente, produto de uma imposição arbitrária em seu todo, ao revés do que ocorre com o símbolo (De Alejandro), porque elas remontam, ad summam, à realidade das coisas, tal como essas coisas podem captar-se pelos sentidos externos (visão, audição, tato, olfato e paladar), percepcionar-se e organizar-se pelos sentidos internos (imaginação, memória sensível, sentido comum e cogitativa), rematando-se na atividade intelectiva e na produção da ideia ou conceito objetivo (Lamas).

78. O direito supõe sempre alteridade, é dizer, uma relação social −relatio ad homines–, e, na medida em que a inscrição nos registros públicos tem os objetivos, entre outros, de assinalar, exprimir e comunicar alguma coisa socialmente, o sinal pelo qual a inscrição se exterioriza deve ter um significado o mais certo, estável e claro possível: os signos variam segundo os tempos e os lugares, mas eles exprimem e comunicam, já ficou dito, paixões da alma humana, e estas são universais, quanto o são as coisas de que essas paixões são imagem.

“Words are symbols of ideas about reality” (Miriam Joseph), e a linguagem, expressão do pensamento humano (“o homem é o único animal que tem a palavra”, disse Aristóteles no Livro I da Política), a linguagem, repete-se, existe para fazer manifesto o bem e o mal, o justo e o injusto, de tal sorte que a participação comunitária nesses conceitos constitui a família e a cidade (Bkk. 1.252 b 11-12). Daí que a ruptura do vínculo entre a palavra −escrita ou falada− e a realidade a que a palavra se refere ponha em risco a higidez e a própria existência da comunidade.

Noutra parte, já tive ocasião de aludir a uma passagem do filme Life of Brian (1979; dir. de Terry Jones), em que a personagem principal, Brian, pichava os muros de Jerusalém com estes dizeres: “Romanes eunt domus” (Brian, na verdade, pretendia significar “Romanos, ide para casa”). Calha que um centurião do Império romano surpreendeu Brian e levou-o a convencer-se dos erros de seu texto, corrigindo-se, por fim, com a sentença “Romani ite domum”, que o centurio impôs escrevesse Brian cem vezes sobre os muros da cidade. É possível que o filme almejasse criticar a pedagogia da língua latina ou mesmo passear algumas blasfêmias, mas o fato é que esta cena retratou, de um lado, a liberdade de expressão política entre os romanos, mas, de outro lado, a intransigência com a perversão do idioma, exatamente porque isso importaria em subverter a própria comunidade.

Não diversamente, uma célebre lição bíblica preceitua que, na linguagem, o sim seja sim, o não, não: sit autem sermo vester, est, est; non, non (S.Mateus).

79. Não há inocência na mudança proposital da linguagem −“nous n’avons jamais cru que les mots sont innocents” (Michèle-Laure Rassat)−, mas não por isto as palavras são um mal (sem embargo da graciosa expressão “les mots sont les maux”), e há mesmo casos em que se exige a atualização expressiva de conceitos (neste capítulo, recordemos o estudo de Badía Salillas sobre a retificação das inscrições antigas no direito espanhol; o caso brasileiro das descrições imobiliárias lançadas em cada folha das trezentas que formavam, no Regulamento registral de 1939 [Decreto n. 4.857, de 9-11], o antigo Livro das Transcrições das Transmissões (art. 182), é indicativo também da conveniência, não de todo rara, de alterar expressões de conceitos que, todavia, permanecem, devam permanecer e até para que melhor se lhes assegure a permanência).

Em outras situações, contudo, “cambiar de lenguaje (…) es cambiar de alma” (lembrou-o Rafael Gambra) −o que é quase como dizer lex orandi, lex credendi.

Não se pode evadir o fato de que a linguagem está sujeita ao dinamismo social: as palavras nascem, vivem e morrem (calham aqui à lembrança o Elucidário de Frei Santa Rosa de Viterbo e a circunstância de o latim ser uma “língua morta”, de maneira que língua insuscetível de mudanças, a despeito −vae mihi− de como se têm traduzido para idiomas vivos certos textos religiosos redigidos originalmente na língua latina). Uma coisa, porém, é o dinamismo da vida comunitária acarretar a modificação paulatina da linguagem, mediante recuperações, adições e subtrações do legado que se entrega (tradat) de geração a geração; outra coisa, muito diversa, é que a linguagem seja manipulada por interesses ideológicos ou políticos.

Não terá sido por motivos diversos que o da exigência do uso fiel e o mais possível certo, o mais possível claro e o mais possível contínuo de cada palavra, o que levou a agrupar, no trivium (parte do sistema de educação das sete artes liberais −é dizer, as artes dignas de um homem livre), a gramática, a dialética (ou lógica) e a retórica, dando-se mais intenso estudo a estas artes do que às reunidas no quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), e mais do que a todas à gramática, porque ela, sendo fundadora (fundatrix), “reivindica o primado [entre as artes]” −vendicat principium (de Châtillon, apud Curtius).

É que a gramática, especialmente no que se refere à linguagem escrita, é “arte estritamente normativa”, assim o disse o mais profundo e sábio dos pensadores brasileiros atuais da gramática, o filósofo Carlos Nougué. Com isto, ergue-se a gramática à condição de um garante da integridade da relação entre o nomen (a palavra) e o numen (a coisa significada, sua realidade misteriosa, numinosa), inibindo-se, com a lealdade social da linguagem, o gravíssimo perigo de provocar-se, mediante a subversão anárquica da palavra, a perversão caótica da comunidade.

80. A inscrição nos registros públicos não escapa das dificuldades gerais da linguagem, a que se devem ainda acrescentar alguns tantos problemas especiais.

Começam esses problemas pelo fato de os signos textuais das instruções tabulares −tendo estas de ser claras e certas− padecerem de uma atração contraposta: por um aspecto, o registro parece chamado pela linguagem comum, linguagem que, em vista de sua maior clareza, pode ser entendida por todos ou quase todos, sem exigência de conhecimentos jurídicos específicos; mas, por outro aspecto, tendo a inscrição de ser certa, vocaciona-se também a uma linguagem específica, a jurídica, que, à conta de seu caráter mais técnico, avantaja-se em precisão relativamente à linguagem comum.

Não é possível, entretanto, que de todo se busque a precisão do linguajar sem atender às necessidades da comunicação. O registro não é um artefato para especialistas em direito, arquitetura, urbanismo ou engenharia. É um ente instrumental da segurança comunitária, formador de certezas para todos da comunidade −assim, deve o registro apropositar-se ad popularem sensum.

Se fosse caso, em vez disso, de desprezar-se a conveniência da publicidade suscetível do conhecimento comum, talvez coubesse sugerir a adoção de linguagens técnicas muito apuradas, mas que seriam apenas reconhecidas por especialistas. Como em tantas outras situações da vida, porém, in medio stat virtus, de modo que não se pensará perfilhar no registro público um idioma que exatamente lhe impeça a comunicação informativa de toda a comunidade e, para mais, formadora de situações jurídicas (vide, para o quadro do Brasil, o tema da inscrição descritiva de imóveis rurais, objeto da Lei 10.267/2001, de 28-8, e de seu Decreto regulamentador, n. 4.449, de 30-10-2002).

81. Vem de molde aqui um excurso, para referir a especialíssima linguagem analítica do inglês John Wilkins (1614-1672), cuja precisão −suposto se conseguisse instituir este idioma artificialíssimo, destituído de historicidade− seria bastante superior à da linguagem comum. Mas se trata, tal se verá, de uma linguagem de gabinete clausurado, um idioma complicadíssimo que não lograria acolhida para o ordinário da vida social.

De fato, numa obra de Jorge Luis Borges (Otras inquisiciones), há um capítulo com o nome “El idioma analítico de John Wilkins”, em que Borges se refere ao fato de Wilkins, entre outros interesses (p.ex., teologia, criptografia, música, fabricação de colmeias transparentes, viagem à Lua), ter versado a possibilidade de uma linguagem mundial, abarcando todas as coisas do universo, incluindo o pensamento humano. Assim é que, escreveu Borges, Wilkins “dividiu o universo em 40 categorias ou gêneros, subdivididos logo em diferenças, que novamente se dividiram em espécies. Atribuiu a cada gênero um monossílabo de duas letras; a cada diferença, uma consoante; a cada espécie, uma vogal. Num exemplo: de, quer dizer elemento; deb, o primeiro dos elementos, o fogo; deba, uma porção do elemento do fogo, uma chama (…)”.

82. Nesta mesma trilha, a adoção de uma novilíngua −ao modo da newspeak de Orwell−, nos registros públicos, pode levar a uma vultosa precisão tendencial nas inscrições, que o povo lerá, talvez embevecido, mas não compreenderá, porque a pretensão de assepsia na linguagem será uma distopia apenas decifrável por uma dúzia de Champollions. (De toda maneira, não nos olvidemos de que alguns institutos sociais e jurídicos, preservando seu nomen, viram alterado seu numen: v.g., o casamento e o pátrio poder).

É de senso comum, ao revés, que qualquer seja o sinal gráfico a adotar na inscrição registral, sua notação é de fato suscetível de não se fazer significante a seus destinatários, senão os de hoje, os de amanhã, porque não se pode obrigar as gerações futuras a compreender nossos sinais coevos, tanto quanto nós não conhecemos inúmeros idiomas pretéritos, nem, muita vez, apreendemos as descrições transcritas nos livros registrários vetustos. Menos mal é que as mais “precisas” linguagens “científicas” somente sejam propícias para reduzir incertezas, mas não para de todo evitá-las (Dinio Santis Garcia), pois, com isto, esperemos que se desapontem um pouco os indiscretos propagadores de uma neolinguagem técnica das inscrições registrais. Parodiemos Rassat: ces mots nouveaux ne sont pas innocents…