Notícias

  • HOME
  • Ricardo Dip: Registros sobre Registros #10

Ricardo Dip: Registros sobre Registros #10

69. É muito provável que a inscrição e a publicidade devam classificar-se entre os princípios institucionais ou suprapositivos, porque não se saberiam entender e efetivar os registros públicos sem inscrição e publicidade, embora, quanto a esta última, adote-se aqui e ali o instituto da inscrição com reserva de conhecimento, tal ocorre, por exemplo, quanto aos registros relativos a aeronaves militares, o que não aflige, em substância, porém, o fim publicitário do registro.

70. O princípio da inscrição, no registro predial, consiste num critério ordenador da forma e dos fins dos atos relativos à constituição, modificação e extinção de direitos sobre imóveis, segundo já um aspecto formal (a maneira de sinalizar-se) e também conforme um aspecto substantivo (o efeito do sinal para o status publicitário correspondente).

Um conceito adequado da instituição registral não prescinde da referência à inscrição: sistema de publicidade provocada e estável de situações jurídicas prediais, que opera mediante inscrição de fatos, atos e negócios jurídicos, e cujo fim é o de assegurar, formalmente, alguns interesses da comunidade.

71. O vernáculo “inscrição” provém do supino do verbo latino inscribo −ou seja, inscriptum−, de que adveio o substantivo inscriptio, onis, com as acepções de “escrito”, “marcado”, “assinalado”, “gravado”, “registrado”, mas também “não escrito” −aqui, em que o prefixo de inscriptum atua sob o modo de negação.

Dessa maneira, é a mais ampla ideia de sinal (e não apenas de signo literal) a que preside o conceito do princípio da inscrição imobiliária, em ambos seus aspectos acima referidos.

72. O sinal ou signo é algo que serve de meio para o conhecimento de alguma coisa −per quod aliquis devenit in cognitionem alterius, são palavras de S.Tomás−, de sorte que o sinal é um significante e remete, de imediato ou não, a um ente sinalizado ou significado.

O sinal, pois e para logo, é um instrumento expressivo e comunicativo: primeiro, de conceitos e, depois, das coisas compreendidas nesses conceitos. Deixou dito Aristóteles, no Perihermeneias, que as palavras escritas (e palavras são signos) exprimem as palavras orais −e ambas esses modos de palavras, orais e escritas, são um código variado na vida humana, conforme os tempos e os lugares. Mas se elas, de fato, não são idênticas, expressam, contudo, no vário de sua historicidade, as universais paixões da alma humana, tanto quanto universais são as coisas de que as paixões são imagem. Assim, é possível a comunicação humana, ainda que as palavras, orais ou escritas, não refiram, directe, as coisas do universo, mas, isto sim, exprimam as paixões da alma que são comuns a todos os homens, paixões essas, como se disse, que se formam por impressão das coisas que, por igual, são comuns ao conhecimento de todos os homens.

73. Consideremos aqui, em breve excursão, antes de avançarmos no específico exame das funções de inscrição ou assinalativas no registro de imóveis, o fato de os homens não poderem viver sem sinais.

Trata-se isto, com efeito, de um dado universal: fossem os homens animais inclinados a viver solitariamente, assim comenta S.Tomás uma passagem do Perihermeneias, não lhes seriam necessários os sinais. Todavia, os homens são naturalmente políticos −tal já o afirmara a muitas vezes secular lição de Aristóteles−, e isto justifica a afirmação de Eugenio D’Ors de que “el hombre (es) un animal que habla”. E escreve. Ou talvez melhor: inscreve, grava, desenha, marca.

É de D’Ors, ainda, a observação de que a constância da linguagem na convivência humana, embora não indique uma determinação natural de um código comum de palavras (orais ou escritas), confirma que o homem é um ser naturalmente expressivo e comunicante. Ou seja, o homem é naturalmente alguém que sinaliza. E sinaliza de modo significativo: é um significante que significa.

74. A história do sinal acompanha a história da humanidade −ilustram-no, em resumo, as pedras de limites do direito babilônico (koudourrous) e os orói gregos –testemunhos da cratofania lítica a que tão bem se referiram os estudos de Mircea Eliade: dureza, rudeza, poder, uma subsistência que desafia as precárias condições humanas, porque o valor sacral das pedras, para os primitivos, deriva de sua função simbólica ou imitativa de alguma coisa diversa dessas pedras. Por isso, as pedras mais e antes se usam ao modo de instrumentos do que são adoradas: armas de combate, insígnias de poder, guardiães das sepulturas –assim, as “pedras funerárias”, os menires, os dólmens. Daí também sua função de objeto ritual: p.ex., as “pedras fertilizantes”, as “pedras furadas” (protetoras da boa saúde), as “pedras de chuva” ou “pedras de raio” (meteoritos), os hermai gregos (pedras de proteção à beira dos caminhos); no Novo Testamento, faz-se referência figurada a essa antiga cratofania: Cristo é a “pedra viva”, a “pedra angular”, a “pedra espiritual” de que se nutriram os hebreus; e a um dos Apóstolos se assenta a comparação com a palavra aramaica kephas (pedra), e nisto se funda a instituição do Papado romano.

Ainda que os sinais líticos preservem, de algum modo, a memória dos acontecimentos da vida dos homens, de suas crenças, ideias, gestas e sentimentos, e como pouco seguros eram muitos dos variados modos instáveis de conservação dessa memória (p.ex., entre os germanos primitivos a prática do alapes donet et torquat auriculas), a necessidade da escrita surgiu como resposta a uma exigência da vida humana, sobretudo da realidade jurídico-negocial, porque, assim o ensinou Georges Jean, “notas de compra e venda não podem ser registradas oralmente”.

75. Desde os cadastros e arquivos no Egito −dos quais já se disse serem os mais “atuais” dos registros antigos− até a instituição do registro imobiliário contemporâneo, a escrita, com seu léxico relativamente estável e submetido a alguns parâmetros sintáticos, é um meio dotado de uma segurança confiável para várias funções no registro.

Mas quais funções a inscrição desempenha no registro imobiliário?

Cinco funções podem atribuir-se à inscrição predial. Primeira: a de conservação do que se documenta no e, de algum modo, pelo registro; terá sido mesmo esta função, historicamente, a dotada de primazia na concepção do registro. Segunda: a de sinalização no registro, vale dizer, a de imposição de um signo para referir conceitos e, com eles, certas realidades humanas. Terceira: a de expressão ou exteriorização de um conhecimento sensível ou de um objeto de conceito, ou seja, a de representação, no registro, de uma parte da realidade exterior. Quarta: a de comunicação do que se encontra registrado. Quinta: a de servir como suporte (e demarcação) para os efeitos da publicidade registral.

76. Tratemos então um tanto do tema e, particularmente, dos problemas da função conservadora que se exerce com o ato de inscrever nos registros −publicis tabulis mandare, assim o referiu Cicero.

A conservação documentária no e pelo registro de imóveis sempre teve de conviver com o drama da busca infrutífera da linguagem perfeita, porque, em rigor, a escrita é um sinal do significado, e uma perda do significado implica a inutilização do inscrito.

Se isto já era algo de que se deviam preocupar as gerações passadas, mais agora parece deva preocupá-las, tanto pela rapidez das mobilidades sociais e culturais em nossos tempos, quanto, principalmente, pela muita vez propositada quebra da solidez nas relações entre signo e significado, na conexão entre nomen et numen.

A integridade perseverante do signo é um benefício da convivência política (Paul Bourget advertira para o fato de que a linguagem não está a reboque do pensamento solitário, e dela se faz mau uso social quando se perverte seu significado). Robert Brennan, numa página de sua admirável Psicologia geral, ensinou que “todo aquele que inventa ou emprega uma linguagem deve estar conscientemente inteirado da significação de fatos, situações, relações e, assim, sucessivamente, antes de poder usar um meio, falado ou escrito, para expressar seus estados mentais.

Daí a necessidade da custódia e observância do dever de integridade na linguagem humana: que o uso perverso de um teclado de computador não ponha a perder, com a anarquia dos signos, o segredo dos numina, porque, de perdê-lo, “avrai pèrso la chiave della felicità” (A. Novaro).

Por agora, a integração de três sistemas de signos, o literal, o áudio e o visual, com sua uniformizada enunciação em bits −“Les bits véhiculent indifférement du texte, du son ou de l’image” (Ignace Ramonet)−, parecerá que acarrete, de fato, o impulso a uma utopia da comunicação (Breton) ou da técnica (Flichy), e Ramonet avista mesmo um messianismo mediático, em cujo espectro ele vislumbra a tirania da comunicação. Mas será que isto basta a garantir a clareza e a permanência dos significantes? Imuniza-nos de idealismos, ao revés, uma realista observação de Roberto de Mattei: será que em vez da utopia do progresso talvez não estejamos a instalar o reino do caos? O fato é que, como antes já o dissemos, hoje as classificações universais de Aristóteles e do Isagoge de Porfírio, o thesaurus da artis magnæ de Raimundo Lúlio e a taxinomia de John Wilkins parecem menos irrealizáveis quando se considera o hipertexto informático, mas não se pode afiançar, nem parece provável, que a linguagem de hoje, ainda que acomodada a signos fônico e visual uniformes, possa impor-se às gerações futuras.

Por outro aspecto, a conservação documentária, porém, é somente um fim intermédio supeditado a outra e mais relevante finalidade registral: a da conservação das situações jurídicas. E quanto a estas situações, é duvidoso que tenha maior importância a celeridade que nos oferece o novo mundo das sinalizações eletrônicas: a labilidade das mudanças contemporâneas tem, de fato, induzido ao primado da técnica e ao gosto e empolgação pela rapidez, mas o movimento célere é exatamente o que menos se quer perseguir com o registro público, porque a inconstância tabular é a antinomia da conservação.