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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #08

(Princípio da independência jurídica do registrador -Parte segunda)

Des. Ricardo Dip

49. Diante de um confronto possível entre teses (e práticas) opostas, quais

(i) a do déficit privatístico −ou seja, a autonomia recusante de fiscalizações sobre o registro público: independência que não se vê e quer já e somente “em sua ordem”, mas ao modo de uma soberania: libera voluntas tabularii non solum in suo ordine, sed in totis ordinibus;

(ii) e a de uma interferência de fato hierárquica sobre as atividades registrárias,

a legislação brasileira salvou aqui a honra do aforismo virtus in medio est (próprio para o campo das virtudes morais), com admitir alguma sorte de atuação normativa no plano das funções técnicas dos registradores.

50. Não há um figurino geral e abstrato que viabilize, na indefinida multiplicidade de circunstâncias sociais, assinar regras que contemplem a inteireza das necessidades concretas para a boa prestação das atividades registrais.

E isto é mais agudo em países, tal o caso do Brasil, de larga extensão territorial e variedade muito acentuada em suas condições regionais: já não bastaria falar nos “dois Brasis” de Jacques Lambert, porque nossa realidade aponta uma ampla diferenciação entre muitos mais Brasis.

Este quadro factual da situação brasileira justifica a norma do inciso XIV do art. 30 da Lei n. 8.935/1994, que dispõe ser dever dos notários e registradores o de “observar as normas técnicas estabelecidas pelo juízo competente”.

Deixou-se, pois, sob a competência do Judiciário −e de um Judiciário também regionaliter− a edição de “normas técnicas” para a atuação dos registradores públicos.

É assim que, certo embora a expressão “juízo competente” não exclua as diversas instâncias administrativo-judiciárias sobrepostas −a Corregedoria Nacional de Justiça, as Corregedorias Gerais de Justiça e as Corregedorias Permanentes, estas últimas com designação variada nas legislações dos Estados-membros−, parece que a previsão legal sub examine, com a expressa referência ao “juízo competente”, propende a reconhecer a necessidade singular e concreta da atuação registrária, com isto prestigiando a atividade prudencial dos juízes dos locais dos cartórios (os lugares do “juízo competente”).

51. A questão mais aguda, todavia, neste capítulo, está em demarcar o significado da expressão legal “normas técnicas”, distinguindo da função técnica no registro os atos de gestão administrativa e financeira, bem como −e, sobretudo− os atos de qualificação jurídico-registral.

É evidente a relevância deste discrimen, com que se evade o risco de vulnerar-se a autonomia do gerenciamento dos cartórios prediais e, decisivamente, a independência jurídica das qualificações registrárias.

52. À partida, convém estabelecer o ponto fundamental em que se especificam, ambas dentro do gênero do saber prático, (i) a função técnico-registral e (ii) a função jurídico-registral (ou de qualificação).

A natureza técnica (ou poiética) de uma dada função corresponde a uma obra exterior (opus externum), de modo que nela (ou por ela) a atividade humana transcende a algo de material exterior: operatio transiens in exteriorem materiam (S.Tomás). Isto é a produção, a poíesis grega, a factio latina, uma atividade inteligente que modifica a matéria do mundo exterior ao homem: “queimar, cortar, pintar”, assim exemplifica Leopoldo Eulogio Palacios nas magníficas páginas de sua Filosofía del saber.

E assim é que existem técnicas registrais, como as que se aplicam na produção de certidões, no exercício de buscas nos livros do cartório, na manutenção ordenada desses livros e na preservação de sua segurança, nos controles do itinerário dos títulos que devam registrar-se, no modo como se lançam as inscrições, nas fórmulas e cautelas de asseguração quanto à autenticidade dos instrumentos, nas formas de garantir as prioridades (a formação de filas ou a boa gestão das senhas), na assinação dos horários de atendimento aos usuários, na ordenação das preferências e facilidades desse atendimento etc.

Neste âmbito de funções −técnicas, produtivas−, cabe a expedição de normas pelo juízo competente, visando à eficiência da prestação registral.

53. Diversamente, a função qualificadora do registrador é a típica de um profissional do direito, exercendo-se, em sua ordem, com independência só submetida à observância da lei e aos limites dos documentos e dos registros a que, em cada caso, deva referir-se o juízo qualificador.

Trata-se, com a qualificação, de uma função prática de caráter imanente, vale dizer que não está na esfera produtiva ou do fazer, mas, sendo uma actio, permanece no âmbito interior exclusivo do operante (p.ex.: “ver, querer e entender” −videre, velle et intelligere). Sua expressão e comunicação posterior secundam o ato mesmo do juízo que lhes é anterior e principal (assim distinguem-se, de maneira própria, o “juízo” e a “proposição”).

A qualificação registral consiste num juízo de controle jurídico acerca da inscrição de um título singular. É uma atividade dirigida, diretamente, à consecução de interesse do bem comum (nisto ela se distingue da qualificação notarial, porque esta última se destina, directe, ao interesse dos clientes, e só de modo mediato ao do bem comum).

54. Qualificar, no registro, é uma ação obrigatória −certo que fundamental para instituir a segurança jurídica: não fosse a qualificação obrigatória, os registros terminariam por acolher títulos onímodos, ainda os viciosos; é isto o que parece dar-se, em alguma parte, hoje, com o registro civil das pessoas naturais, a que, opinam alguns, podem aceder vontades de todo gênero e ilegalidades de não importa qual caráter −desde que isto corresponda ao volúvel talante de quem pleiteie. Com certa impiedade, houve já quem dissesse que o registro civil se vem tornando uma espécie de degradado “álbum de recordações”. E, desta forma, quanto mais pitoresco, mais atrativo parece… e mais produtivo de caos, decerto.

55. Qualificar, no registro, é uma ação pessoal −e, porque típica da virtude da prudência, uma ação concluída em consciência (consciência moral) e de que se faz responsável o registrador. Vale aqui tomar de empréstimo a conhecida expressão do muito autorizado Luis Paulo Aliende Ribeiro: “delegação não se delega”.

56. Qualificar, no registro, é uma ação independente −in suo ordine−, quer dizer, sem prejuízo de revisões e, antes, de determinados limites, que são os ditados pelos documentos exibidos ao registrador, pelas inscrições tabulares que lhes corresponda e ainda pelas normas legais em vigor. Demasiado seria pensar fosse a qualificação registral um juízo arbitrário, despótico, que se dirigisse à segurança jurídica por meio de uma ilimitada insegurança quanto aos juízos hipotecários. Excessivo seria cogitar que a independência qualificadora do registrador pusesse em risco sua missão de vigilância da legalidade e de custódia dos bens imobiliários que lhe são confiados.

Neste capítulo da independência, o registrador atua na aferição dos livros registrais, no controle da legalidade das formas extrínsecas dos instrumentos (o que inclui o exame da competência de quem os emite), na verificação da capacidade legal dos outorgantes, da validez da disposição, do status registral do disponente, da observância das exigências legais dos negócios e ainda das próprias do registro (p.ex., trato consecutivo, especialidade), formando, no fim e ao cabo, um juízo de caráter prudencial −ad summam: “registre-se” ou “não se registre”−, juízo este que se ancora e demarca nos limites do quod est in tabula, in documentis et in legibus.

57. Contra esse juízo prudencial de qualificação proferido pelo registrador cabem impugnações, sem que elas malfiram a independência registral originária.

Independência registrária in suo ordine é a imunidade de ditames concretos prévios ao juízo de qualificação registral, ditames esses quer sejam oriundos de particulares, quer o sejam do poder público, incluído aqui o juízo competente para a fiscalização dos registros.

Não significa, entretanto e mais além, que se haja de inibir o controle posterior da legalidade desse juízo de qualificação, o que se pode obter mediante processos administrativos (dúvidas registrais e pedidos comuns, também ditos “de providência”) −que consistem, propriamente, em impugnações de superintendência− ou por meio de processos jurisdicionais (p.ex. mandados de segurança, demandas de obrigação de fazer, retificações etc.).

58. No domínio, pois, da qualificação, a independência jurídica do registrador exclui, em cada caso, o comando prévio proveniente de um poder de direção superior.

A categoria de superintendência dos registros −própria para o resguardo da independência do registrador (semper in suo ordine)− não se compatibiliza com a emanação de ordens, exatamente por permitir e para permitir o exercício do juízo prudencial pelo registrador.

A noção de poder de superintendência enunciada por Marcello Caetano −“a faculdade que o superior tem de rever e confirmar, modificar ou revogar os actos administrativos praticados pelo subalterno”− pode ainda aproveitar-se, no plano da fiscalização registrária, se dessa noção se remover a ideia de “hierarquia” (superior/subalterno), de modo que dela se aparte, no âmbito da qualificação registral, a possibilidade de imposição de comandos prévios, concretos, singulares, específicos, que impliquem necessária observação de uma conduta pontual futura.

O espartilho peculiar do poder de superintendência, no entanto, depende da lei −até porque a administração pública está submetida ao princípio da legalidade−, e é preciso ver se lhe compete ou não a emanação de diretivas (orientações de caráter geral). Ou se, diversamente, a lei lhe confere apenas o poder de controle (fiscalização e garantia da observância da legalidade).

E é a propósito deste figurino legal, no Brasil, que pensamos devotar nosso próximo pequeno artigo desta série “Registros sobre Registros”, sindicando sobre a competência do poder superintendente dos registros no quadro brasileiro coevo.