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Ricardo Dip: Registros sobre Registros #21

(Princípio da publicidade -Quinta parte)

157. Já antes o vimos (cf. itens 77 et sqq.), ao par do atributo da expressividade, a inscrição −e, com ela, a publicidade− cumprem ainda as funções de significar e comunicar. Num certo aspecto, a comunicação, enquanto é intencional, precede a significação e o signo; é aquela, a comunicação, que reclama construir um signo significante.

Temos de logo uma limitação: salvo se cedêssemos à tentação de articular aqui uma semiologia registral, havemos de partir de noções já convencionalmente recolhidas no território da semiótica, por mais que o discrimen, por exemplo, entre sinal, signo e símbolo, apresente algumas dissonâncias entre os diversos autores.

Para o estudo mais pontual que nos interessa aqui, parece bastante dizer que, nos registros, inscrever e publicar algo que o seja exige, além do mero sinal (i.e., uma simples exterioridade física), um símbolo, é dizer um sinal dotado de sentido e com aptidão potencial para comunicar, socialmente, um conceito ou uma imagem sensível.

Assim, enquanto o sinal seja uma externidade que, provindo de uma fonte emissora, mostra ou indica alguma coisa, constitui um gênero, de que o símbolo é espécie (porque o símbolo tem sempre alguma sorte de analogia com aquilo que é simbolizado ou significado).

158. O registro, pois, não apenas sinaliza; ele simboliza, ele representa. Não pode limitar-se ele a mostrar ou apontar, porque não alcançaria sua finalidade se não significasse, de modo mediato, algum referente e se, a seu propósito, não exercesse função substitutiva ou vicariante.

A ideia do símbolo como aliquid por aliquo −algo em lugar de outra coisa− põe à mostra a função vicarial: o nomen representa o numen. Não foi primeiro com Ferdinand de Saussure, mas, sim, com Aristóteles, que se admitiu, isto no Perihermeneias, a direta raiz do signo com a palavra oral. As escritas, depois, expressam as palavras orais, ambas, ao fim, constituem um código variável que exprimem as paixões universais da alma humana. E estas, por sua vez, os entes −os referentes (pessoas ou coisas)− de que as paixões são imagem. Trata-se de uma expressão que, na linguagem agostiniana, “mostra algo ao espírito” (sinaliza e comunica).

159. Há uma série de questões a propósito desta exigência de significação registral: elas começam com o uso de signos que devem dominar-se pelo emissor (o registrador); signos que se remetem ora a conceitos (p.ex. usufruto, compra e venda, alienação fiduciária), ora a imagens sensíveis (v.g., a descrição de um imóvel), sempre, de toda a sorte, com um liame referencial (a um ente externo: uma pessoa, uma coisa).

A compreensão ou conotação do signo registrário (e aqui o vamos resumir ao campo do texto escrito, do signo escritural) e sua extensão ou denotação a referentes (pessoas, coisas) são imposições resultantes da própria finalidade pública dos registros. Mas o problema não se esgota em que os destinatários de hoje compreendam a linguagem registral de hoje −é dizer, que o registrador textualize agora para a leitura e compreensão de seus contemporâneos−, porque é preciso estimar não só como se comunica a sinalização registral pretérita, mas pensar também nos destinatários futuros das mensagens de ontem e de hoje.

160. Os conhecidos casos de descrições imobiliárias conformadas a acidentes físicos desaparecidos no tempo são um exemplo gráfico da dificuldade de permanência dos significantes registrais (extinguiu-se o córrego tal, secou a figueira qual, removeu-se a pedra, fechou-se uma estrada particular, já ninguém ou quase ninguém sabe quem foi o Coronel Limoeiro etc.). Mas não é só, por certo.

Ainda agora, com a notória potencialidade dos recursos informáticos, talvez nos seduza a ideia da “linguagem perfeita”, uma espécie de reencontro do paraíso perdido, o fim da dispersão idiomática, a imposição de um código definitivo de comunicação para todas as gerações.

Não aparenta persuasória a utopia de um alfabeto imutável −a sinalização cuneiforme dará razão aparente, em contrário, a quem afirme ter havido escritura antes das letras−, nem no convence de empolgar-nos o paradoxo da fixidez enunciativa da conjunção dos bits convivendo com a celeridade dinâmica da comunicação de nossos tempos: sempre parece lembrar-nos que a relativa maior facilidade do emprego dos alfabetos, a seu tempo, nunca pôde suplantar a persistência de problemas lexicais, nem a incessante procura de novos sistemas de sinalização.

A sobrevivência de questões de linguagem e a perseverante busca de sua superação podem indicar-se, graficamente, desde a confusio linguarum (Gênesis, 11-9) até a distopia da língua perfeita (Umberto Eco), e sua memória é, até aqui, a de frequentes fracassos. Além dos óbices das pouco franqueadas demarcações lexicais, são ainda e muito consideráveis os problemas do irrefreável dinamismo idiomático e o de seu confronto no interior da cada comunidade: um dicionário, disse-o Sérgio Corrêa da Costa, é um trabalho “eternamente inacabado, pois jamais conseguiria abranger a totalidade lexicográfica de um idioma”.

161. Por mais, porém, caiba reconhecer a grandeza dos recursos informáticos, eles são apenas um instrumento para o registro de imóveis, e só podem admitir-se úteis na medida mesma em que se comportem como uma causa eficiente ou meio para a consecução dos fins registrais. As inscrições prediais e a publicidade imobiliária eletrônicas não são um novo registro de imóveis, mas ainda o velho registro que, depois de usar a caneta e a datilografia, agora usa outros meios de sinalização.

O mundo jurídico nunca esteve isento de intempéries semânticas, e elas não atraem a prognose de desaparecer com o só recurso instrumental da informática. Junto à classe quase algebrizada de conceitos, convivem ambiguidades e equívocos da inevitavelmente vívida linguagem social, a que se associam propositados standards, tudo a sugerir que a terminologia “própria e exata” do direito (a do registro público, não menos) se resigne, muitas vezes, a ser somente o testemunho de uma ampla e consciente indeterminação lexical, como fez ver o saudoso e grande jurista que foi Dinio Garcia.

(Quero aqui percorrer um pequeno excurso. Foi isto objeto de apreciação num dos Tribunais brasileiros: a um homem imputou-se o ter ofendido moralmente a mulher, injuriando-a ao chamá-la de “vagabunda”. Defendeu-se o réu. Alegou que “vagabunda” é tanto a designação de uma espécie de formigas, quanto ainda a referência aos que vivem de maneira errática. Claro está, pois, que apenas por meio de uma dimensão pragmática é que se poderá verificar a efetividade realista do uso desta palavra semanticamente equívoca, tal o é o vocábulo “vagabundo”. Não se deu mesmo o caso de que Mikhail Bakunin −célebre anarquistaa decimonônico−, referiu, certa vez, numa carta política, aos “vagabundos da Rússia”, entre eles relacionando expressamente santos e ladrões. Também dos goliardos medievais, vagueando de cidade em cidade, pode dizer-se que eram “vagabundos”, e nisto não lhes fazia moléstia alguma: estes caminhantes −à margem seu gosto pelo hedonismo e pela profanação− têm até o crédito de um saboroso cancioneiro, do qual podem com honra invocar, ao menos, a letra do hino até hoje tido por universal dos acadêmicos —Gaudeamus igitur,/ juvenes dum sumus;/ post iucundam juventutem,/ post molestam senectutem,/ nos habebit humus. Dos goliardos pode dizer-se então, sem ofensa nenhuma, que eram vagabundos por antonomásia. Mas a mulher, aquela que o réu chamou de vagabunda, ela não estava sendo designada como se fora uma formiga ou nômade, nem de santa russa, nem de goliarda, mas, isto sim, por ser mulher que levava uma vida moralmente devassa. Bem se vê que não esta em pôr esta palavra −“vagabunda”− num expressivo conjunto de unidades armazenáveis −os bytes−, o quanto lhe bastará para vencer-lhe as dificuldades compreensiva e interpretativa).

Em resumo, a tarefa determinativa de eleição de um entre vários conceitos ambíguos ou equívocos é inevitável no mundo jurídico, na medida em que tem ele de acolher os problemas da vida e a dinâmica de sua linguagem. E isto não aparenta superável com o só uso da informática.

162. Nossos tempos −já o temos repetido− viram integrar-se três sistemas de signos: o literal, o áudio e o visual.

Assim, o registro imobiliário pode valer-se dos recursos informáticos, não só, p.ex., por meio da concorrência da sinalização visual −plantas, mapas, vídeos e fotografias− dos imóveis objeto comumente só de descriçõesliterais, mas também pelo uso da hipertextualização, que permitirá rápido acesso a inscrições correlativas, sejam próprias de outros imóveis, sejam pertinentes a dados de registros pessoais e de cadastros administrativos. Está-se aí no âmbito das possibilidades técnicas. Isto, contudo, não aparta a ocupação com harmonia dessas técnicas relativamente à natureza e à finalidade do registro imobiliário.

Em pequena meditação inaugural, na Universidade de Coimbra, desfiamos já uma série de indagações a propósito do tema:

(i) posto o caso de uma dissonância entre as sinalizações −visual e textual−, qual delas haverá de prevalecer para os efeitos jurídicos da publicidade registrária?

(ii) Ainda estaria a justificar-se a literalização descritiva de imóveis, se eles, entes físicos naturais, podem ser percepcionados por um meio imagético?

(iii) A função textual-descritiva, nos registros, estaria, nesse quadro, projetada apenas para a ulterior formação de títulos escriturais?

(iv) Qual a espécie de convivência que espera estabelecer-se entre uma nova linguagem descritiva e a textualização não descritiva dos registros?

(v) A admissão de hipertextos registrários é compaginável com o direito de privacidade?

(vi) A hipertextualização não inclinará exatamente a prejudicar a gráfica visualização do fólio real?

(vii) Alguma linguagem “técnica” −suponha-se, um idioma georreferencial− poderá ter a pretensão de definitividade?

(vii) Alguma linguagem “técnica” poderá ter a pretensão de acessibilidade profana?

(viii) Alguma linguagem “técnica” poderá ter a pretensão de converter o registro de imóveis numa academia de ciências exatas ou num bloco de relatos acessíveis apenas a peritos em física teórica?

163. Nesse mesmo brevíssimo e periférico estudo coimbrão, acima referido, observou-se que, seja qual for o sinal a adotar-se na inscrição imobiliária, o signo sempre será uma expressão fragmentária da realidade e mero produto de um meio−de visualização, iconográfico, textual etc.−; uma sinalização convencional, um enunciado emitido com uma dada linguagem, de fato suscetível ou não de compreender-se por seus destinatários.

Prosseguiremos.